“O turismo de natureza e os créditos de carbono podem gerar centenas de milhões anuais, provando que o Okavango vale mais em pé do que perfurado.”
No extremo sudeste de Angola, onde o silêncio ainda é cortado pelo som dos elefantes e o céu se espelha nas águas calmas dos rios, estende-se uma das últimas grandes paisagens selvagens do continente: o sistema ecológico do Okavango, coração de uma rede transfronteiriça com mais de 520 mil quilómetros quadrados (KAZA TFCA Secretariat, 2024). Hoje, esta região enfrenta um dilema nacional: abrir-se à exploração petrolífera ou posicionar-se como referência em desenvolvimento verde?
Preservar o Okavango não é apenas proteger a biodiversidade é activar uma oportunidade económica. Com o turismo de natureza e os créditos de carbono, Angola pode transformar esta paisagem num activo real: gerador de receitas, empregos e reputação internacional. É uma escolha de visão. E de tempo.
A Área de Conservação Transfronteiriça Kavango-Zambeze (KAZA) é a maior rede ecológica do continente africano. Com mais de 520 mil quilómetros quadrados distribuídos por Angola, Botswana, Namíbia, Zâmbia e Zimbabué, alberga cerca de metade dos elefantes de savana remanescentes em África (KAZA TFCA Secretariat, 2024) e cumpre um papel crucial na preservação da biodiversidade, na regulação hídrica e no equilíbrio climático da região.
Do lado angolano, integram a KAZA as reservas da Luiana, Mavinga, Luengue e Mucusso, actualmente distribuídas pelas províncias do Cuando e do Cubango, conforme a mais recente actualização do mapa administrativo. Esta zona representa o ponto de origem do sistema ecológico do Okavango e conserva paisagens praticamente intactas, mas economicamente subaproveitadas.
A criação da ANAGERO (Agência Nacional de Gestão do Okavango) sinaliza vontade política para estruturar este território estratégico com uma visão integrada. O tratado fundador da KAZA é claro: os Estados signatários comprometem-se a transformar conservação em desenvolvimento sustentável (SADC, 2011). Angola tem o território, o mandato e agora uma escolha decisiva pela frente, o que está em causa é o valor que pode ser gerado em manter a paisagem viva.
Enquanto o lado botswanês do Delta do Okavango gera mais de 400 milhões de dólares por ano em receitas turísticas, segundo o Botswana Tourism Organisation (2023), o lado angolano permanece praticamente inexplorado. Botswana apostou cedo num modelo de turismo de alto valor e baixo impacto, com infra-estruturas adequadas, formação local, regras claras e campanhas de promoção consistentes. Angola, com paisagens semelhantes e maior autenticidade territorial, ainda não se posicionou no mercado global do ecoturismo.


O UniVisa KAZA, mecanismo regional que permite a entrada de turistas com um único visto partilhado, já funciona entre a Zâmbia e o Zimbabué e está em processo de extensão aos restantes países da região. Angola ainda não aderiu formalmente, mas tem condições para se integrar, sobretudo através de corredores naturais como Mucusso e Dirico, junto à fronteira com a Namíbia. Estas zonas, se devidamente estruturadas, podem tornar-se pontos estratégicos para ligar Angola às rotas turísticas transfronteiriças.
Num mundo onde os viajantes procuram autenticidade, biodiversidade e segurança, Angola tem no Okavango uma vantagem competitiva real. Com estratégia e vontade, pode transformar o que hoje é margem em liderança. Investir nesta rota não trará resultados imediatos como o petróleo promete, mas é o único caminho com retorno sustentável, distribuído e duradouro.
Para além do turismo, o Okavango angolano pode tornar-se uma fonte estratégica de receitas através da valorização do carbono que retém. O mercado voluntário de créditos de carbono remunera actualmente entre 5 e 15 dólares por tonelada de CO₂ evitado (Verra, 2024), e países africanos começam a estruturar projectos de conservação com retorno financeiro. Um exemplo emblemático é o Kariba REDD+ no Zimbabué, que gerou milhões em créditos certificados, beneficiando comunidades locais e assegurando a preservação de vastas áreas florestais (Carbon Green Investments, 2023).
Além dos créditos de carbono, emergem também iniciativas para valorizar directamente a biodiversidade, como os créditos de biodiversidade promovidos por redes internacionais como a Biodiversity Credit Alliance (Biodiversity Credit Alliance, 2024). Países como a Colômbia e a Costa Rica já lançaram projectos-piloto com foco na conservação de espécies e habitats raros. Em África, a África do Sul começou a aplicar metodologias semelhantes em áreas naturais seleccionadas, com o objectivo de atrair investimento e reconhecimento para zonas com alto valor ecológico (Carbon Pulse, 2024). O Okavango angolano, com a sua diversidade biológica ainda intacta, pode posicionar-se como o primeiro território da região KAZA a integrar este novo mercado emergente de financiamento ambiental.
Com densidade ecológica e extensões florestais relevantes, as reservas da Luiana, Mavinga e Luengue têm potencial para gerar créditos de carbono certificados. No entanto, Angola ainda não possui uma legislação específica sobre créditos de carbono, o que tem dificultado o desenvolvimento de projectos nesse sector. A criação de um quadro legal claro e a definição de competências institucionais são passos essenciais para avançar nessa direcção (INBAC & MinAmb, 2024).
Organizações como a Verra e o Gold Standard estabelecem padrões reconhecidos internacionalmente para a certificação de créditos de carbono. A adopção desses padrões por Angola pode atrair investimentos e garantir a integridade dos projectos desenvolvidos.
Transformar o carbono em activo comercial é, hoje, uma decisão estratégica. Nenhuma estratégia é completa sem incluir as comunidades que guardam a floresta.
Na Namíbia, o modelo de conservancies comunitárias tem demonstrado que a gestão de recursos naturais pelas próprias comunidades pode gerar inclusão económica real, incentivar a conservação e reduzir a pressão sobre a fauna selvagem (Namibia Association of CBNRM, 2023). Este modelo, implementado com sucesso, permite que as comunidades locais se beneficiem directamente do ecoturismo e da preservação ambiental.



Em Angola, propõe-se a criação de um Okavango Carbon & Tourism Hub, centrado nas reservas da Luiana e Mavinga, que integre ecoturismo estruturado, certificação de carbono e mecanismos de partilha de benefícios com as comunidades locais, com modelos inspirados nas conservancies da Namíbia, mas adaptados à realidade institucional e cultural angolana. Este projecto-piloto, sob a alçada da ANAGERO como promotora institucional, exigiria a colaboração com o secretariado da KAZA e parceiros internacionais de conservação para garantir a sua viabilidade e sucesso.
A proposta não surge do vazio. Em 2018, como Director Nacional da Promoção Turística, apoiei a realização do RAID Cacimbo Okavango Zambeze, uma das primeiras iniciativas a percorrer o corredor KAZA com enfoque turístico. Em 2024, como Director-Geral do Instituto de Fomento Turístico de Angola (INFOTUR), lancei a 1.ª edição do Raid Okavango, reforçando o compromisso institucional com o desenvolvimento do turismo de natureza. Estas experiências demonstram que, com visão, parcerias e continuidade, é possível transformar paisagens em oportunidades e impactos em permanência.
Contudo, nenhuma visão estratégica será suficiente sem um acto claro de escolha nacional. Em 2025, Angola enfrenta uma decisão crucial: optar por licenças petrolíferas que podem comprometer ecossistemas valiosos ou investir num modelo de desenvolvimento sustentável que valorize o seu património natural e beneficie as comunidades locais.
O futuro do Okavango angolano não se decide apenas com mapas, decretos ou furos no solo, decide-se com visão estratégica, coragem política e uma leitura lúcida do século XXI. Em 2025, Angola está prestes a licenciar, na zona da bacia Etosha-Okavango, um projecto de exploração petrolífera que se sobrepõe a ecossistemas únicos, partilhados com a Namíbia e o Botswana (ReconAfrica & ANPG, 2025).
Esta é uma decisão que marcará gerações. De um lado, a promessa de ganhos rápidos com o petróleo, mas com riscos ambientais sérios e consequências que atravessam fronteiras. Do outro, a oportunidade de integrar o país num modelo verde de desenvolvimento: com turismo de natureza, conservação financiada por créditos de carbono e inclusão real das comunidades.
O Okavango angolano não é só um activo ambiental. É uma vantagem competitiva capaz de gerar receitas sustentáveis, pagar salários, preservar culturas e reposicionar Angola como líder de um novo pacto ecológico regional. Mas nenhuma visão estratégica se realiza sem decisão. Nenhum futuro é construído sem escolha.
Porque a paisagem vale. E paga, se for respeitada. E se for, de facto, escolhida.
Fontes e referências:
•KAZA TFCA Secretariat. KAZA Overview & Annual Report, 2024.
•SADC. Treaty on the Establishment of the KAZA TFCA, 2011.
•Botswana Tourism Organisation. Tourism Statistics Report, 2023.
•Verra. Verified Carbon Standard Registry, Maio 2024.
•Carbon Green Investments. Kariba REDD+ Factsheet, 2023.
•INBAC & MinAmb. Relatório sobre Áreas Protegidas, PDF Nº 34/2024.
•Namibia Association of CBNRM. Community Conservancies Impact Report, 2023.
•ReconAfrica & ANPG. MoU Etosha–Okavango Basin, Abril 2025.
•Biodiversity Credit Alliance. Guiding Principles for Biodiversity Credits, 2024.
•Carbon Pulse. South Africa explores biodiversity credit mechanisms to fund conservation, Março 2024.
Sobre o Autor:
Lukeni Araújo é especialista sénior em turismo e desenvolvimento institucional, com mais de 15 anos de experiência nos sectores público e privado em Angola. Foi Director-Geral do INFOTUR, consultor dos ministros do Turismo e da Economia e Planeamento, e coordenador de programas ligados à formação, hotelaria e apoio a MPME. É licenciado em Gestão Internacional de Hotelaria e Turismo, mestre em Direito Internacional Empresarial e doutorado em Gestão Estratégica e Liderança. Tem acompanhado o desenvolvimento da região KAZA e participou em iniciativas de promoção turística no corredor do Okavango.